terça-feira, 25 de janeiro de 2011

- Você não acha que ele está aqui por causa do nome, hein, Lô? Lenin saiu do país e hoje trabalha em cruzeiros na América do Sul. Quem diria.
- Mas ele é de Honduras, querida. E estamos no séc XX.
- Um nome desses sempre traz problemas, você não acha?
- Deve ser. Será que ele não traz o cartão logo? Vou enlouquecer como a Matilde se não acabarem logo com isso.
- Onde raios fica Honduras? Minha professora de geografia era míope e vivia ensinando a Itália na Grécia, uma loucura. Fiquei semi analfabeta em geografia...E eu cabulava aula com a Francesca, lembra dela? Aquela com focinho de porco. Dizem que ela foi pra Europa ano passado e voltou falando da sua árvore genealógica francesa, uma perua. Com menos cartão de crédito ela era mais boazinha...mas serviu para o nariz de porco, hein?
- Meu Deus, como você é ruim.
Mas estava desinteressada, longe. Tinha começado um tango barulhento, hora do show, e o casal dançava com beleza mas também com espalhafato, assim como ela. E pensou que aquilo, aquilo sim era paixão. Aquilo que ligava os olhos deles e fazia a Lorena rodar o dedo triste na taça barata e larga, martini. E perder o rebolado. Aquilo que descabelava as argentinas e coloria os pêlos dos chicos. Paixão, sim, podia destruir tudo, de uma vez só, derrubar tudo. Mas podia mudar também, e criar. Podia criar. Talvez por isso a Antônia tivesse medo desses vermelhos vivos e insistisse nos tons terra, toda ela muito natural, só a boca com o batom muito claro e barato, toda num tom só, só a boca, muito discreta, pra pronunciar aquele alemão ríspido que dizia pra si mesma quando se zangava. Nos vestia de amarelo pálido, verde sem forma. Depois da adolescência é que a Lô ficou espalhafatosa e apaixonada assim. Desaprovaria...sairia raivosa naquele passo pesado e sincopado mas fecharia a porta com perfeição. Os alemães. Mas ela gostava muito que estivesse tudo no lugar, a governanta, devia ter medo dessas coisas, paixão, vermelho, amarelo, tudo, e nos batia a vara na mão quando nos distraíamos da tarefa...e quando encontrava nossos cadernos cheios de coraçãozinho. Não pode pensar nisso, entendeu? Porque não, Antônia? Porquê? O pai disse pra chamá-la de Antônia, ela foi embora e eu não descobri como raios ela se chamava. Devia ser uma espécie de piada infame pra ele, alemã até o último fio e com um nome brasileiro assim...Filha de imigrantes. Solteirona. Tinha olhos de quem sofria como o diabo e de quem respeitava quem tinha dinheiro, mas não gostava, não gostava nada daquilo.
- O nome dela nem era Antônia, hein, Lô? Mas ficou.
- De quem?
- Da governanta.
- Sim, da governanta, eu querendo conversar sobre o Afonso, aquele desgraçado, e você pensando em governanta.
- Não precisa ficar assim nervosa, ele vai voltar. Ele e aquelas camisas bem cortadas que você fica o dia inteiro alisando.
- Não sei, não sei ... - disse ela batendo nervosamente a cinza do cigarro na beirada do cinzeiro. Ela, no entanto, vestia uns verdes profundos, azul...e gostava desses olhos dramáticos sempre mais dramáticos, e os gestos dramáticos. Parecia um animal, você não tem vergonha não? Vista-se, menina! Cubra esses joelhos! Uma apaixonada. Uma perdida, desesperada. O amor é mesmo uma desgraça, hum? Estraçalha. Soltou os cabelos dela. Soltou a cor dos seus olhos. Ela parece ter sido pega no pulo pela jaula. Petrificada. À mercê. Devo acrescentar que a vejo assim mas devo estar da mesma forma deplorável, ando barulhenta, larga, como se tivessem se juntado mais braços aos meus, e outro corpo, e uma segunda voz, e tudo o mesmo. Tudo eu ainda, feroz, grande, e terrivelmente separado. Queria que a moça do bar entendesse e cantasse assim suave, besame, besame mucho...mas ela ia insistir no barulho e nas luzes, não adianta. Como se fosse a última vez...Não seria? Talvez ele esquecesse de ir embora hoje. Talvez tivesse a delicadeza de encontrá-la por aí.
- Eu mato ele, Manu.
- Mata nada, ele ama você. Apesar de eu não saber como ele suporta essas suas manias.
- Não sei o que é isso aí que você chama de amor...eu já achei tanto bilhetinho de vagabunda na carteira, tanto número engraçado nos bolsos da calça...
- Cada um tem o amor que pode ter, Lô. Agora que seu amante te quer você já não o quer mais, e está apaixonada pelo seu marido...não é uma coisa que faça sentido, mas é possível.
- Ah, Manu, e você, e você, hein?
Eu? Logo eu? Se ele viesse, eu me esconderia embaixo da mesa. A Margarida sempre diz, essa língua afiada como uma cobra, sempre escondida. Esses olhos de bicho assustado e essa língua que deus lhe deu...Deus não dá asa a cobra mas também não sabe o que faz.
- Não sei. Acredito mais na meteorologia do que no amor, sabe.
- Não sei como você vive.
- Não é tão difícil quanto parece.
Tinha ainda o gosto dele na boca. Gostava também daquele cheiro dele nela, mulher dele. Mas logo passaria...e ele também ia sumir, sem vestígio. Como um delírio. O gosto dele na boca. Sorria. Sorria e brincava com a vodka, saboreando. Saboreava os olhos dele enfiados nela, os dedos dentro da pele...sorria, patética. Me leve embora daqui, Lô, antes que não haja mais esperança pra mim. Antes que eu fique perdida e vermelha e quente como a moça do tango, e eu não quero, não quero, vou me perder! Vou ficar assim como você, partida. Ele não vai comigo, Lô, tampouco vai me ligar. Vamos embora antes que eles cheguem no gran finale, pode ser fatal, fatal! E sem saber bem porquê, deixou os dólares na mesa e saiu, fugida, antes que ele viesse. Sobretudo, antes que ele não viesse.

Um comentário:

  1. eu tô com uma frase besta na cabeça há alguns dias... "apaixonar-se é estar inconscientemente disposto a sofrer", ou algo que cause o mesmo impacto. a paixão te esvazia, e só ela te preenche... é o extase em um filme de terror, eu acho.

    ResponderExcluir