sábado, 16 de outubro de 2010

Quintas, s/n, n° 124.

Chegou em casa com o dia já claro, mas sem os olhos. Dois buracos tristes no meio do rosto. Não consigo, não consigo! Quis gritar, mas era muito cedo e nesses tempos de estado democrático de direito todo mundo tem muitos direitos, não é verdade? Prendeu o grito e os olhos fundos, tristes. Nem isso pode demais, sofrer anda proibido por esses condomínios de luxo, só em casa, na privacidade! E não vá constranger os outros, menina! Queria se esconder na barra de alguém, fugir. Por que não inventavam uma solução nova? Por que ia ser assim? E os olhos tristes, tristes, afundados. Você vem sempre aqui? Não, quis responder, só quando estou com o coração irremediavelmente fodido, não pretendo voltar, sempre rezo pra não voltar mas volto, parece da natureza da gente, né? “Está aí um que não fará grande carreira no mundo...as emoções o dominam!” É, Dom Casmurro, vamos juntos, vamos todos juntos para o fundo do poço, se é o que Deus quer. Se é pra isso que inventaram essa porra toda. Mas estão todos dizendo, veja os olhos dela! Mas eles não deveriam saber, ninguém deveria saber. E eles faziam barulho, hum? Muito barulho e muitas mãos, muitas pernas, e ela no meio ria, ria e virava os copos que lhe davam, virava todos porque tinham todos o mesmo gosto que as pernas, as línguas, tudo tão sujo, meu pai. E foi difícil ter que te levar àquele lugar! Pra onde agora, pra onde? Queria ir embora, eu quero dar o fora! Mas o corpo ainda ali, doído, o coração ainda faltando, pra onde agora? Até o carro parecia correr meio afobado, buscando o meio fio, pra onde agora, onde? As mãos serpenteavam seguras e decisivas entre a marcha e o volante, e tudo pesava e ela queria correr, correr e não parar de correr nunca mais, o acelerador que não ia mais mas ela puxava, puxava, eu quero dar o fora! E a garganta sofrida, acabou chegando em casa, o que agora? Os nervos irrequietos, não, respirar, é assim mesmo, melhor hoje que depois, mas como, hum? Como, meu pai? No som descia um samba vibrante, batido, dentro de tudo muito cinza, tudo muito tenebroso à essa hora, nenhuma alma viva na rua e cinza e áspero, como era violento e sarcástico o samba descendo a avenida! Pra onde agora? Não devia ter dito nada daquela porra toda, diziam umas firulas e pronto, não tinha sido assim antes, hein? Por que é que tinha que alongar aquela enorme língua naquelas coisas de que nem tinha muita certeza? O que era a verdade, afinal? Eu quero a verdade, meu Pai, me deixa ver a verdade. Tira meu coração desse buraco. Me explica, me explica como é que eu vou fazer, não é muito cruel da sua parte? Ou a mazela é toda nossa? Você não tem responsabilidade não, hum? Chame um advogado, mas daqueles filhos do demônio mesmo, que nós vamos ver se a responsabilidade não é sua, seu depravado! Vamos resolver tudo como se resolve aqui embaixo e eu quero um juiz corrupto que eu possa comprar por muito, muito caro, que seja um bom dum prostituto moral, veja só o que você deixou, hein? O que deixou que nós nos tornássemos. Nós éramos bons...eu e ele ainda somos bons, apesar de tudo, não é? Mas nem disso eu sei mais. Eu não, sempre fui uma vadia enrustida. Aceito tudo, vou levando, digo que sim, sim, está tudo na mais perfeita ordem, doutor. É disso que eles gostam, não é? Ele me pergunta que é que eu faço aqui sozinha...Moço, você vê esse vermelho aguado no fundo do copo? É meu coração.