sexta-feira, 31 de julho de 2009

E a tarde tinha o mesmo cheiro, mas dessa vez era diferente. Como todas as outras vezes. Aspirou satisfeita a singularidade inebriante, soberba.

[ah, os vícios capitais, esses sempre ficam nas boas almas. No fundo faz-nos melhores, alguma coisa plausível e inofensiva entre deus e o diabo.

terça-feira, 21 de julho de 2009


- E o que está fazendo aqui, Sr. H.?
- Vim lhe contar a mesma mentira de ontem, minha jovem.
- E qual é?
- Sua geração está perdida, minha cara.
- Tenho que discordar.
- É mesmo?
- Nós usamos o conhecimento a nosso favor, e não contra nós em falsas ideologias.
- Há! Se me permite, a senhorita fala como um comercial, e não convence.
- Nós valorizamos a vida...
Ele sorriu, adivinhando – não vá me dizer dos direitos humanos, pelo amor de Deus.
- Oras, e por que não diria?
- Pra que lhe servem, me conte! Se o governo engana vocês todos os dias. Se vocês continuam desiguais como nós éramos. E exploram e matam mais que nós, devo lembrá-la.
- Outros já enganaram os senhores também.
- De fato. Fizeram da nossa virtude e nossa ingenuidade armas contra nós próprios.
- E no que difere, então?
- Por que fazem justamente o contrário, não vê?! Exploram em vocês o egoísmo e o vício. É isso que assusta, pequena. Nós lhes demos o poder para não se deixar ludibriar. Demos a democracia, a filosofia, o esclarecimento, a liberdade, até o modernismo. Têm de tudo para serem bons, mas contam-lhes mentiras todos os dias e, se não acreditam em todas, acreditam na maioria delas.
Ela pareceu um pouco atordoada, um pouco ressentida.
- Mas não preocupa, que toda mentira é um pouco verdade, criança. É só uma questão de ponto de vista.
- Eu queria a verdade inteira – lamentou.
- Ah, e isso muitos quiseram, alguns conseguiram.
- E como se reconhece?
- A verdade, a verdade é aquilo que brilha, menina.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Você sabe exatamente onde eu tenho estado, mesmo que nem imagine. Porque você lê as cartas e sabe todas as nossas verdades mas não influi, fica assim como um monge guardando a calma. Sabia que eu voltaria hoje com olhos de quem não tem medo mas de quem andou demais e ah, menina, que morre de medo. Porque sem você o coração não bate mais, e alma vazia só bate na parede, oca.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

No início nem o que saía de sua boca me dizia muito.
Seu ritmo vertiginoso foi tomando forma, cor, gosto.
Seu corpo foi se arredondando em vogais, vírgulas, parágrafos.
Quando percebi, todas as estrofes já faziam tanto sentido que chegava a doer. Soávamos como hiatos.
Meu vocabulário se estreitou logo nos seus olhos dentro dos meus.
Adentrou o meu apartamento vestida de palavras...
Era o frenesi das histórias que não se pronunciam, entre um corpo e outro.
Começou a passar muito tempo fora, e gritava, a minha menina passional. Eu ria, irritado, e os olhos dela se endureciam.
As palavras acabaram, sobrou nossa conversa de movimentos agressivos, passos desgostosos, de silêncio.
Os pés dela eram passo decidido que no caminho soluçava, como um ator descontrolado que interrompesse o personagem e num átimo já se recompunha.
Eu pude sentir todas as palavras se encolherem apavoradas, horrorosas, distorcidas, como se arrancasse um fio do tecido. Por todo o apartamento, pelos meus nervos, se repuxavam em mim, se acavalando. Meus órgãos gritavam de dor.
E foi assim que nós ficamos ilegíveis.
Os rabiscos agora fazem parte da mobília, como as feridas da ajudante desavisada, e tentam não me dizer.
Roberto, meu amigo, depois dela a minha linguagem nunca mais foi a mesma.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

O dia parecia alegremente ensolarado, só para me ironizar. Respirei fundo, botei o sorriso que já se acostumara na minha boca, e atravessei a soleira.
- Então, mamãe, como está?
- Você sabe, meu bem, as mesmas dores de sempre. Hoje de manhã, imagine, aquela empregada nova quase jogou no chão meu aparelho de chá, aquele do casamento, e a Mariana pra variar trocou o remédio da caixa azul com o horário do da outra, vermelha, que toma 3x ao dia, de manhã, outra depois...

Entrar naquela casa era como visitar um sonho que se tornara pesadelo. As cortinas estavam puídas mas continuavam solenes, sérias. Nem o sofá mamãe me deixou trocar porque disse que essas coisas novas não prestam. O tapete tem algumas falhas nas pontas que ficam embaixo do tapete, e lembro de todas as vezes em que as fiz. Achei que papai fosse me bater, mas ele era respeitável demais e já naquela época seus amigos influentes pesquisavam sobre a educação das crianças. Papai era comerciante mas muito italiano, e parecia que a todo lugar que íamos as pessoas gostavam dele, conheciam, cumprimentavam. Ele gostava. Não fora um homem de educação mas isso não contava a ninguém, e só nos contou maiores para que não arriscasse uma gafe das feias. Juliana falava pelos cotovelos, prestava atenção em tudo e não se atinha a nada, sua língua era perigosa. Mas nas rodas daqueles seres enormes e importantes que vestiam casacas bem cortadas nós ficávamos obedientes como boas garotinhas deviam ser. Eu sinto que já quando mamãe estendia o vestido florido e o enfeite do cabelo na cama já me vinha toda a responsabilidade de ser aquela, a filha do comerciante, a princesinha bem comportada de cinco anos. Nós interpretávamos. E, melhor do que pôr o vestido de gala, era tirá-lo e poder correr e sujar as meias brancas na grama de novo.
Papai circulava bem entre os médicos, os advogados, os empresários. Era interessado e astuto e tinha uma dignidade que fazia da sua figura alguma coisa brilhante. Mesmo depois de todas as incoerências da adolescência, eu nunca esqueci do meu pai altíssimo, bem vestido e digno, digno até o dedão do pé que nunca víamos. Como os tapetes, as jarras, está tudo embaçado mas ainda tem um pouco o gosto de antes.

- você lembra da Suzana, filha da sobrinha da sua tia Gabriela? Eu já lhe apresentei ela uma vez, você devia estar na faculdade. Outro dia encontrei-me com ela na rua e me disse que a nora dela, a Darlene, anda pior, foi internada essa semana no Santa Cecília, a prima dela veio da Argentina pra ficar com a família, imagine...

Não sei mais por quantas horas ela falou, e dessa vez eu ouvi tão pouco, meu pai. Morreu hoje de tarde, disse o enfermeiro, e ficou ecoando muito tempo, morreu hoje de tarde, morreu hoje de tarde. Mas ele não sabia o que dizia. Nem eu sabia o que ouvia. Parada cardíaca, ô, paizinho! Vê se é coisa que Deus faça, você que tinha o coração tão forte da roça quando pequeno, do trabalho, da mulher. O senhor que sorria tão gostoso.

- Mas você não me contou do seu pai até agora, menina, ele estava irritado com a confusão das passagens e já tem um tempo que ele não me liga, ligou foi na terça feira, se eu não conhecesse seu pai diria que ele estava tão estranho, Tereza.

Morreu hoje de tarde, eu sinto muito, dona, quer que ligue pra funerária? Eu quero é que vocês e todos os seus médicos vão pra funerária negociar a própria morte, que vão todos pro inferno! Não sei se eu respondi. Não sei se eu fui lá, se assinei aqueles papéis, se perguntei mil vezes as mesmas coisas pro médico que não tinha muitas explicações, tem aquela cara de sonso que eu queria amassar no chão e queria tanto chorar, queria tanto chorar porque eu estava destruída. Respondi mecanicamente, saí do hospital, liguei pro Luiz Fernando pra perguntar do papel do cartório. Não sei o que foi que eu fiz no velório, com aquele corpo frio que não respondia, com um caixão que afundava na terra, que muita gente me abraçou e eu não encontrava consolo pruma vida tão bonita. Pro amor que se espreitara mas que só agora gritava, como poucas vezes gritara, tomando espaço, desvairando os pulmões. O lugar todo me doía, o sol fraco e a noite virando dia e o dia virando noite parecia um todo irrelevante só. Gritava com tanta força enquanto eu rezava pela alma do meu pai e pela minha própria salvação, tenha piedade de mim, meu Deus.

- Tereza, você está me ouvindo?

Mãe, o pai morreu, o pai morreu e eu não deixei enfiarem os algodões no nariz dele, mas ele morreu mesmo, não voltou não, não respirou, não respirou mais. O coração não quis bater, mãe, e antes que houvesse tempo, eles o haviam enterrado.

- Mãe.

- Tereza, eu perguntei do seu pai.

Meu pai está morto, mãe, eu nem consigo acreditar nisso. Como pode parecer tão natural aquele corpo rijo, o túmulo cerrado? Ele era meu pai e tá doendo tanto. Mamãe está lúcida hoje, logo hoje. Um dia parece ótima e toma chá com biscoitos, no outro grita de medo de ficar sozinha na fazenda, chama mãe, mãe, mãe com um desespero de dar dó.

- Papai foi visitar a tia, disse que lamenta muito que a senhora não possa ir mas mandou lembranças. Estava feliz quando me ligou e disse que os campos de trigo estão mais bonitos do que nunca, e que eles tem tomado sol no final da tarde, que as crianças do Ronaldo estão grandes que é uma beleza. A senhora sabe como ele gosta de crianças.

- Mas ele disse que demora?

O doutor Gilmar disse, ela está cansada, minha filha, e os rins estão piorando tudo, não vai durar muito. Esses surtos às vezes dão trégua mas fazem muito mal, e esses remédios só estão tentando aliviar a dor. Não há muito mais que se possa fazer.

- Talvez demore, mãe, e ele disse que não fique aflita porque está tudo bem, lá na casa da tia não vai telefone ainda mas ele gosta de ficar longe dessas coisas, a senhora sabe. Disse que pensa na senhora sempre, não disse isso quando te ligou?

- Ele disse, filha. Mas essas manias de velho do seu pai estão piores que nunca, eu fico preocupada com ele. E os remédios, será que levou todos? Eu pedi a Mariana pra conferir mas não sei, se pudesse eu mesma resolvia isso tudo, estou cansada dessa cadeira de rodas.

"Ela vai andar de cadeira de rodas daqui pra frente. ´Não vai poder andar mais?´ ´Não, o corpo está debilitado demais, isso não vai acontecer. Tereza, você devia preparar seu espírito, já conversou com o padre?"

- A cadeira é só por uns tempos, hum? Pra não cansar as suas pernas de modelo, logo logo não vai mais ficar nelas, eu prometo, ok?!

Eu sabia que eu prometeria qualquer coisa. Papai estava lá na roça, corujando com aquela cara satisfeita os netos da sua irmã querida, tinha a árvore genealógica e tudo, tinha orgulho da sua família e contava aos filhos, aos netos. Sangue nobre, nós brincávamos com ele. Nasceu pobre mas com aquele sangue honrado, aquele rosto honrado, aquelas mãos honradas.

- Não fica preocupada com ele, mãe, está tudo bem. Ele disse que lá faz um sol lindo como daqueles das nossas férias na fazenda, você lembra como ele gostava?

Ficamos nós duas assistindo-o em silêncio, sentado na cadeira na varanda vendo eu e a Juliana com o Tor, o cachorro argentino, sujas com ele de terra até o fucinho, enquanto a mãe catava alguns tomates pro jantar e ralhava conos. Ralhava com ele também por nos deixar sujar as roupas daquela maneira, mas ele ria e chamava-a de minha velha com um carinho que soava como um soneto. Ele era o nosso dono do mundo, e brilhava como o sol. Eu a abracei, ela não reclamou mais das rabugices dele, e passou a dissertar sobre as milhares de coisas sem importância. Eu ouvia, e mesmo que o cheiro daquela casa me fizesse sentir na pele a morte do pai, meu coração ficara mais quente. Ela estaria sempre assim, entretida com essas coisas pequenas, desenovelando e enovelando tudo de novo, sem parar, mas com o coração sincero e perceptivo. Mamãe punha sua gravidade pra debaixo do tapete e falava sobre as receitas, as vizinhas, a prataria. Soava tudo tão bonito enquanto o amor por ela, por ele, por nós todos percorria com força as veias do meu corpo, mãe, quero você assim, cotidiano. E o coração leve para sempre, porque iremos todos pro lugar em que ficamos, ficamos para sempre na fazenda com o sol caindo devagar e a vida brilhando entre os dedos, enquanto dizíamos banalidades. Não era preciso que disséssemos coisa alguma, todo o resto dizia por nós aquilo que não se pode dizer.