terça-feira, 20 de abril de 2010

Bateu na porta. Lá dentro tocava uma musica abafada, jazz. Bateu muitas, muitas vezes. E então girou a maçaneta, claro que ela não se daria ao trabalho de trancar. Entrou; e ela lá, no chão, rodando o whisky num copo de vidro barato. Sentou-se ao seu lado, impotente. Aline, Aline. O saxofone subia sem medo, afoito, descompassado, gritando uma melodia antiga que entranhava assim na alma, tomando generosamente o coração. Não havia mais nada: ambos pararam de respirar, assim como todos os seres, enquanto o mundo parava de rodar, enquanto os pássaros paravam o vôo no ar, e só aquele saxofonista respirava, gritava, voz inevitável de alguma coisa determinante e comum. Dizia tanto que a raiva dele se aplacou, tirou a mão dela do copo e pôs entre a sua, enquanto aspiravam a escala. Ela parecia indiferente e entorpecida. Sentiu a pulsação na mão dela, precisava puxá-la, tirá-la dali, então segurou-a com um pouco mais de firmeza.
- Por quê precisa fazer isso, hein?
- Fiquei rica hoje, tô tomando whisky. Foi um daqueles garotos de ontem que me deu.
Ele fungou, irritado, crispando um pouco as mãos, mas não falou.
- Não sei bem de onde ele surgiu...jamais vou saber o nome dele, entende, Roberto, só sei que tinha o pinto pequeno e me chamava de Cinthia sem parar. Cinthia, Cinthia, nome engraçado, né?! Disse te ligo um dia desses, me deu um tapa na bunda e me deu essa garrafa pra eu ficar bêbada como um gafanhoto, esperando o Dr. pinto pequeno me ligar.
- Por quê faz isso, hein, porquê? Olha pra você!
- Por nada, Roberto, eu gosto disso. Você não quer admitir mas eu sou suja, suja.
- Como pode dizer isso pra mim?! Então você quer que eu te deixe aqui, parecendo uma drogada?
Ela continuou com o olhar fixo no retrato largo na mesinha do lado do sofá. O vidro enorme refletia as duas figuras largadas no chão, parecia um esboço de nanquim, os dois desabados e a garrafa quase no final. E os olhos dela, olhos muito escuros e compridos, borrados do traço largo, preto, muito preto. Atrás, o gramado muito verde e as quatro figuras pareciam num catálogo.
- Não enche, Roberto.
O saxofone se sobrepôs à conversa, largo, apaziguador. Alçá-la do abismo, meu pai. Segurou a mão melada de whisky e cigarro, o maço vazio jogado prum lado, a garrafa de whisky acabando, uma mancha enorme no tapete verde. Amanhecia frio e ela de short e a camisa brilhosa desabando do ombro, um arranhão no alto do pescoço, os cabelos embolados, descendo em desalinho. Mas o ar felino tinha passado, agora era só dor. Via seu coração lá dentro, dilacerado, pingando. Rasgado daquela guerra sem razão, daquelas razões que eram só dela. Os olhos tinham ficado assim vazios, vidro. E o whisky descendo quente pela garganta áspera.
- Desculpe, você sabe que não quero dizer isso. Foi aquela cantoria infindável aqui embaixo que me deixou assim autoritária. - E desenhou um sorriso leve no canto dos lábios - Acho que deviam ser proibidos pirralhos alegres no mesmo prédio em que maiores de 30. Os 30 anos são mesmo uma desgraça, hum? Daria uma mão e andaria assim pra sempre com os pulsos dentro dos bolsos da calça pra ter os 20 de novo e ser ainda mais alegrinha e bobinha do que era.
- Não precisa ser assim. E você tá muito longe dos trinta.
- Precisa, declarou séria, virando o resto do whisky do copo. E os trinta parecem tão perto, um túnel sem fim.
Os olhos muito escuros e maquiados ficaram assim mais fundos, mais aguados, vou te contar uma coisa, Roberto. É assim porque só assim eu posso esquecê-la. E eu tenho medo, muito medo.
Pronto, só faltava terem drogado a garota.
- Vou buscar gelo pra esse roxo no seu joelho.
Besouro que cai de costas não levanta nunca mais.*
- Senta aí, não me trata como uma bêbada. Só tô triste.
O sol se espreitava pela janela meio aberta, a cortina velha e ocre quase imóvel, o mundo vai explodir de quente. Mas ainda estava bom. O sol veio nas pernas dela e o roxo ficou mais roxo. Uma dor lenta pela lascividade suja dela, tão branca e com os olhos tão tristes enfiados no preto das revistas. Ela se encolheu um pouco e ficou assim, abraçada aos joelhos, olhando pra janela, com o rosto virado pra ele. Escorria a maquiagem em água pura. Preciso ficar assim suja, Roberto, pra ser indigna dessa dor contra a qual eu não posso. Por isso eu precisei de todas as boates escuras, de todos os homens, de todas as manhãs igualmente imundas. Me sujar pra recusar essa dor que é só minha e grande, muito grande. É pra me salvar, Roberto, é por medo. É meu jeito de enganar esse destino de Maria Madalena, não quero chorar mais, tô cansada. Tô doída. É pra me enganar, também. Respirou fundo, deixando a dor escapar pelos lábios entreabertos. Ele se moveu, inquieto. Não, não diz nada, não...Beijou a mão dele, displicente, passou os dedos nos olhos e puxou outro cigarro. Não soube dizer quando acabou o saxofone e o silêncio ficou, aquecido no sol meio pálido, tão cedo ainda.
- Ficou quente hoje.
- É.
- Prometi à minha mãe que ia lá hoje à tarde, você quer vir comigo? Ela perguntou por você, disse que faria o frango ao molho pardo. Uma puxa saco! Pra mim não faz nada disso.
- Aline.
- Roberto - ela riu.
- Você parece melhor agora.
- Eu sei. - ela disse, amarga. E virou o resto da bebida no gargalo.



* - Lygia Fagundes Telles: Ciranda de Pedra.

Doug, espero que você não se assuste.
D., perdoe a repetição.

sábado, 10 de abril de 2010

Precisava que gritassem, gritassem muito alto dentro dos seus ouvidos, que escravizassem o pensamento que vagava, ouvindo tudo em partes, alheio, esquecido. A dor se arrastava lenta, viscosa. Rezava sem convicção, mas pedir não custa. O jornal não dizia coisa com coisa. O mundo parecia desconexo aqui do lado de dentro. Correu pra se esconder. Gritou. Ameaçou. Acabou abatida, se embolando nos cobertores. Dormir, dormir até mudar o século, até a dor cansar e vir o sol, tingindo as árvores.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

- Nós nunca estudávamos.
- Eu sei.
Eu podia te dizer que era você, você que eu quero. Mas não pretendo mentir. Se você me deixasse ficar, se você abrisse os portões e voltasse a ter o jeito despretencioso que tinha no início, e parasse de me dizer isso que diz pras mulheres com quem você sai às quintas e sextas feiras, eu poderia ficar e te perguntar, menino, porque foi que você ficou assim, arisco? Podiamos ficar assim, sem ruído. Mas moramos em caixinhas de fórforos empilhadas até o céu, e não temos muito tempo, apesar de termos solidão e contatos de sobra. Da janela eu olho a menina que fica horas no telefone com o namorado de noite. Às vezes ela senta atrás da porta e chora, chora e a dor dela fica a minha, ela parece tão abandonada... Vejo a mulher de cabelo bagunçado e camisa amarela desbotada passar as camisas bem cortadas do marido, e depois não vejo mais. Ele vem e eles vão pro quarto ter uma noite de sexo tórrido ou comem batatas frias na frente da tevê, não sei bem. Ela gosta de cantar as músicas românticas no rádio mas fica mais lenta por isso, não sei se de amor ou de tristeza. No outro prédio uma sala de espera sem fim, uma espera sem fim com uma luzinha amarelada e um ambiente escuro. Aqui do lado ela se pinta e sai às quartas, mas cada dia é um diferente. Aparecem na porta com caras ótimas, impacientes. Acho que ela atrasa um pouco. Os mais frios só ficam lá, martelando a buzina. ÀS vezes eles ficam no apartamento mesmo, mas esses também vão embora. Loira com uns cabelos que não acabam nunca. Bateu o carro no meu na garagem porque não sei onde aprendeu a dirigir, um horror. Loira com seu ka vermelho como fogo. Juventude triste, menino. Triste como os seus olhos completando 24 e sem brilho, repetindo as frases e os movimentos de mil noites loucas e rasas. Imagino que se você me visse aqui nesse apartamento todo pequenino e sutil, com essas camisas largas, o que é que dizia. Se ia me achar abandonada e triste como a garota do telefone, ou passada como a mulher das camisas. Ou se veria isso, uma mulher traída, com um casinho, esperando o telefone tocar. Não toca. Ela sai, tira o carro, vai no centro, nos consultórios, no caralho a quatro, e ninguém diz. Ninguém diz.