sexta-feira, 2 de julho de 2010

- Que é que você tem?
Estou doente de desafeto, Marina, doente! Há dias que estou enfurnada nesse apartamento, eu e Beethoven e o passarinho que não liga pra mim, vou te contar, Beethoven é o melhor deles, mas muito doloroso. Era um fodido também, assim, que nem eu. Talvez até pior, não sei, porque não fico prestando atenção na vida desses caras, prefiro pensar que são um pouco os semideuses e escreviam as partituras na mesma febre em que Caio escreve, tudo sincopado, perfeito, perfeito desde o início. E aí invento as sujeiras mundanas deles, apesar de não conseguir pensar em nenhuma safadeza com a Elise, por exemplo, que música mais bonita, não é? Tenho tanta pressa, Marina, gostaria de te explicar, tanto, mas você fica com essa carinha de sonsa e dizendo do horror que deu no jornal hoje, você não viu? Não vi, não quero saber, deixo os jornais sempre por fora porque não quero acreditar que somos assim ruins, vovó contava uma história tão bonita do amor com que Deus foi fazer, à imagem e semelhança, porque haveríamos de ser uns filhos da puta? Não, não quero olhar porque nunca falam das pessoas cristãs desse mundo, praticantes, de suas experiências de fé! Olha, andei assistindo muito canal cristão também, confesso, me arrependo, Deus deve me odiar mesmo, talvez por isso...! É que eu acho engraçado o jeito que eles falam, sabe? Como se fossemos os leprosos, e eles os sábios ensinando as criancinhas. Eles se alegrando a cada convidado que chamam, e falam de experiências de fé e vendem livrinhos pra te fazer chegar a Jesus, não é hilário, Marina? Fico pensando onde é que o mundo vai parar com pessoas assim como eu, você e a iluminada sem decote e saias compridas na tevê.
- Hein, o que tem feito, menina?
- Não sei, Marina, comprei uns livros e fiquei aqui quase o feriado todo, fui na casa do Daniel porque teve festinha lá, mas foi só.
- Hum, o Daniel de novo.
- Pare com isso, você parece uma criança. Não põe tanto tempero assim não porque vai ficar ruim, você não conhece os meus temperos. E além do mais, ele tem aquela namoradinha.
- Só você se importa com isso. Não sei em que mundo você vive.

Não sei o seu, Marina. Fica me sondando só pra ver se meu rosto muda, fala e fica olhando, procurando, já disse que eu sou boa em esconder as coisas, não adianta. Mas depois fico falante como um papagaio, nem ouço mais o que digo e digo bobagens, bobagens encarrilhadas que vão descendo a ladeira, uh! Não acaba nunca mais. Até ela esquecer, mas ela sabe. Marina, antigamente as pessoas morriam de desafeto também, não é? Não naqueles livros que você lê, em que os casais ficam dizendo eu te amo toda hora e aproveitando o dia ensolarado pra fazer um piquenique cristão; estou falando sério, eu era boa nisso mas agora fiquei ruim, fiquei fraca, me salva, Marina! E ninguém pode me salvar porque fui eu que cavei, fui rodando e rodando e cavando a terra e negando até chegar aqui, agora sim. Fiquei sozinha e me achando uma boba, tão bobas as discussões que não vão nem ficam, só ficam assim, bolha de sabão, as palavras atravessadas. Convicta ainda porque vou até o final. Era o certo, o melhor, então pronto, está feito. Se perguntarem do que foi, Marina, não foram nem os cigarros, nem o emprego capitalista e sanguinário que me angustia, foi desafeto. Mas eu juro que vou na redação segunda feira, juro que vou escrever as mesmas coisas de sempre e não vou me matar, nem fazer pregação pras pessoas, vou ficar quieta e boba como sempre. Mas o olho cinza, cinza até a cegueira. E mesmo quando a gente acha que não sente mais nada, nem se o próprio diabo descer com o fogo e pedras e provações, não sou igual a você, Marina, fingindo que tudo te ofende porque assim fica mais fácil e as ofensas menos agressivas, sensível a Marina, fiquei boba como você, se for no cinema assistir aqueles filmes absurdos vou chorar pelo cachorro, pelo papagaio, pelo vilão que se deu mal, por tudo.

- Depois do almoço a gente podia ir no café ali embaixo.
- É? Pode ser.
- ...comer aquela torta de chocolate com morango.

4 comentários:

  1. Se fosse um filme, seria de Almodovar.

    Mas é um filme; me lembra Ferreira Gullar, há algo parecido.

    Uma coisa é entender a vida, outra coisa é aceitá-la. Aceitar a vida é um dom (: .

    ResponderExcluir
  2. "Fica me sondando só pra ver se meu rosto muda, fala e fica olhando, procurando, já disse que eu sou boa em esconder as coisas, não adianta."

    Descrição super familiar. Adoro quando as outras pessoas conseguem transmitir algo que parece tão íntimo seu.

    Bjooos!

    ResponderExcluir
  3. "Fica me sondando só pra ver se meu rosto muda, fala e fica olhando, procurando, já disse que eu sou boa em esconder as coisas, não adianta."

    São algumas das máscaras que usamos, por medo, por fraquesa, ou por amor.
    Me identifiquei tanto com o texto.

    Beijinhos!

    ResponderExcluir
  4. a coisa mais triste é saber que tortinha de morango com chocolate cura desafeto. e eu não concordo com o que acabei de dizer, agora mesmo, porque me desafetei e não tenho nem torta, nem morangos escurecidos de chocolate, de uma máscara mal coberta.

    ResponderExcluir