domingo, 16 de agosto de 2009

Eu tento lembrar que gosto tinha o dia dos dias mais ordinários. Eu esqueci que música você tocava pra mim. Jurava que nunca ia esquecer, mas esqueci. Peguei o dinheiro dos nossos projetos no banco mas não fui pra Grécia, (os recém-casados acabariam me matando antes que eu pudesse matá-los), então fui pra Las Vegas. Gastei rios em todos os cassinos. Eu quis ficar rica pra me embriagar todos os dias, pra jogar todos os dias, pra continuar triste e exagerada com meu batom vermelho, com os cabelos compridos e caros, os vestidos espalhafatosos, curtos. Eles olhavam pra mim mas passava tão rápido...eu tinha medo de como olhavam. Eles não queriam conversar, queriam strip poker, queriam dormir no meu quarto, queriam jogar com o meu dinheiro, beber a minha bebida. Eu dizia que não e eles logo iam embora com as asiáticas. Você ficou, ficou mil vezes me pedindo só pra que eu não me preocupasse e ficasse mais um pouco. Eu lembro quando eu ainda não vestia vermelho e não chamava tanta atenção, eu lembro de todos os romances que li e dediquei a você, eu lembro de todos os poemas que eu não escrevi pra você. Lembro do dia em que você me obrigou a escrever a última página...cintilava, preto demais: begging you please don´t go. E na verdade era a primeira página pra minha nova vida, pra minha memória cativa de você, Sofia sempre dizia que a história nunca acabava, vinha outra e vinha outra e outra, sem parar. Até que um dia...pára. A gente pára de respirar e tudo o que não disse fica sem dizer mesmo, nem os médiuns salvam. Eu nunca disse tudo, ficaria carregado, sabe?! Mas fiquei tão atordoada com a idéia que martelava na minha cabeça, não posso ficar sem você, não posso, eu vou morrer como o passarinho que bateu no vidro da varanda, morte de passarinho é a coisa mais triste do mundo. Implorei baixinho pra você ficar, não tenho nem coragem de imaginar com que força eu devo ter pedido. Você disse, não posso, Lygia, você sabe que eu não posso, não faça isso comigo! Eu morri ao ouvir meu nome seco e pesado demais, desabei no chão, tonta. Você se agachou, limpou as lágrimas, me deixou esconder o rosto no seu peito, tão inseparável do seu coração que pulsava alto, quente. Não tive coragem de abrir os olhos enquanto você se levantava. Ouvi a porta bater, e depois, mais nada. Nada, e nada, nada, indefinidamente. Um grito de bicho se formou na minha garganta, soou alto, sozinho e doloroso, ecoando no silêncio. Cravei as unhas no chão. Podia ter engolido uma bomba atômica e ninguém ia se importar. Nem eu me importava mais. Tive que me concentrar pra não respirar como um enfartado, pus a música que acalmava mas havia um gosto febril de você em tudo. Até na rua, andavam tão parecido, começavam a rir daquele jeito, aquele tem a mesma pinta debaixo do queixo...eu procurei tanto por você. Desisti. Desisti de ficar triste, de pensar, de querer sair, eu queria mesmo era virar uma planta e pronto, talvez uma árvore...uma macieira ou um pessegueiro, algo assim que chegasse a doer de tão bonito, como o solinho que você tocava que chegava a doer de tão bonito. Ganhei muita coisa em troca, é verdade...mas sabe o que incomoda? Eu nem tenho mais medo de assalto, de cobra, morcego, de nada, porque não tenho mais medo de morrer. E eu te pergunto, o que sobra de um espírito sem medo? Só desgoverno. Por isso eu grito, visto vermelho, mudo de país, vendo os nossos sonhos e compro qualquer outro. Perdi o rumo, amor.

3 comentários:

  1. freud um dia disse que somos os seres da falta.
    na eterna ambivalência, quod me nutrit me destruit.
    um beijo.

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  2. Isso me lembrou "atrás da porta",com Elis Regina interpretando.
    Doloroso e lindo!

    Beijos!

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