domingo, 7 de junho de 2009

Março

Mas faça o que você tem que fazer, menina, não tenha medo. Deus quer é isso; o reino dos céus é daqueles que se despem e abrem os braços, meu irmão costumava dizer e mamãe não gostava que dissesse assim, mas eu já não lhe disse que meu irmão sempre teve talento para o ordenamento? Mamãe não gostava das inclinações moderninhas deles e das interpretações sexuais, mas ele tinha a naturalidade dos escolhidos por Deus, e nem precisava estender a mão e falar nada pra tudo ficar em ordem, sua risada e sua calma já instalavam a paz das coisas boas. As garotas gostavam dele, tinha um jeito meio aéreo mas era bom, era um homem bom. Já te contei sobre o acidente, não foi? Mamãe rezava novena pela paz do meu irmão e já engatava uma reza pelo garoto do outro carro, esqueci logo o nome dele, só conseguia pensar nas mãos pesadas e sem jeito que tinham dirigido. Era um sujeitinho arrogante de maconha até o talo e cara de reggueiro, eu só não enfiei a mão nele por causa da mãe. Ele não estava bem, eu disse a pretexto de interromper o guarda, ela não precisava saber que ele estava drogado, o coração era severo mas também era bom, até a nossa empregada que era meio ranzinza vivia falando: coração bom, o da dona Marluce, e engolia as reclamações cotidianas sobre o sal da carne, mas não sem resmungar consigo mesma um pouco. Ela é muito católica, sabe, Letícia? Até hoje passa horas sentada naquela cadeira rezando baixinho, quando está aflita move os lábios com força e eu posso até ver o céu muito claro tragando os olhos dela, tal a fixação com que ela olha. Ela não merecia que lhe dissessem que o homem que matou o seu filho tinha fumado maconha.
Sabe o que doeu mesmo, Letícia? Ela se esqueceu de rezar. Muitas vezes pegava assim num movimento bambo o terço, mas já não se reconheciam mais, os dedos que percorriam o terço e as pérolas pequenas. Não havia intimidade, ela nem chamou por Deus nenhuma vez, como quando ela precisava muito dele, quando rezava com fervor. Pegava repetidas vezes e logo esquecia a reza e ficava com aquele olhar parado muito tempo. Depois percorria os olhos por tudo, e nunca parava em lugar nenhum, olhava olhava olhava e não via. Dava uma tristeza, minha menina. O corpinho miúdo ficou só um fiapo pálido naquela penumbra da capela, parecia uma ovelhinha em sacrifício. Resignada, branca, o corpo curvado de dor e aceitação. Quis tirá-la de lá mas não consegui. Acho que ela nunca soube o que o padre disse aquele dia, Deus a havia traído, eu lia nos olhos dela. Mas não tinha raiva. Abaixava a cabeça e eu posso jurar que via aquele brilho de lâmina acima do seu pescoço. Eu sempre achei que a morte em si era boa, mas a lâmina sem o golpe era o inferno. A expectativa que não se consumava, o coração doía demais e teimava em não morrer, não morrer. Mamãe teve lá os seus exageros, mas é boa, não sei porque calhou castigá-la. Resignada, depois que conseguiu sair do quarto ia à capela perto de casa para pedir perdão, suspeito. Porque ela ficou deprimida, Lê, até o médico ficou com medo, ela já não era uma moça. E ela mal falava, nem pra reclamar da comida falava com a empregada. A maior parte do tempo parecia não se dar conta da nossa presença, e andava pra lá e pra cá, sem saber o que estava fazendo ou o que precisava fazer. Bordou mantas compridíssimas que nunca acabavam, mas acho que não se distraía com elas senão se concentrava mais e mais. Me disse uma vez com a voz grave que ia rezar pela alma do irmão e pela paz do garoto, mas suspeito que ela ia pedir perdão por ter sentido que Deus a traíra. Eu podia sentir cada fagulha de fé e doutrina queimando ferozmente a heresia que nem ousava pronunciar, a heresia que ousara sentir. Era preciso se purificar, então ela passava dias inteiros enfiada na capela, falando com o padre, rezando no quarto. E pra tudo que eu digo ela costuma dizer, Deus sabe o que faz. E sua voz ficou meio amarga, as pérolas seguras convictamente por entre os dedos magros. Os olhos azuis ficaram para sempre como duas pedras no fundo da água, baças. Na tevê um homem sem expressão continua encenando sua fé, repetindo incessantemente o terço, mas mamãe acredita nele, e pede perdão, e pede pelo seu filho. O filho dela era bom, Lê. Ela jurava que ele tinha vocação pra padre mas se não quisesse também não tinha importância, teria filhos com os mesmos olhos grandes e claros, que falariam com a mesma calma e seriam já duas ou três risadas que podiam tudo contra tudo. Sua casa seria assim o templo dos deuses nos domingos em que fôssemos visitá-las, mas havia um homem drogado no outro carro e a casa ficou pra sempre meio opaca, cansada, velha; enquanto ela reza, reza como se pudesse trazer o seu menino de volta, e como se fosse ontem, e como se fosse hoje e ela pudesse parar a fumação do cara arrogante.

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