terça-feira, 28 de setembro de 2010

I feel old, but not very wise.

- Os homens são todos iguais, Letícia.
- Todas dizem isso, mas até você?!
Ela riu abafado, rodou a cereja no fundo do copo - Não! Olha, olha bem...é só uma questão de tempo, até você descobrir a única verdade irrefutável: os homens, esses porcos chauvinistas, são todos iguais, iguaizinhos, viu?
- Ah, cala a boca.
- Juro! Pode perguntar pra melhor mulher do mundo, ela não vai negar...
- Sai da sacada, anda!
- Porcos! Todos porcos! Ela gritou da sacada e riu, riu tanto que escorregou e caiu sentada no chão, um dos vasinhos de flor saiu voando, nove andares de peso e queda livre. Meu Deus, Lê, posso ter matado alguém, entende? Você vai me ver na cadeia? Vai me arrumar um advogado?
Ela correu pra olhar, uma mancha amarela e preta se estendia na calçada. A essa hora, não tinha mais ninguém. Ficaram tão opacas as florzinhas na luz artificial do poste...Uma vassoura bateu no piso, vinda de baixo, o Sr. Alfredo de novo.
- ...Liga pro Otávio Onofre, eu até gosto dele, ele é o menos chau-vi-nis-ta, tão bobinho com aqueles terninhos bem cortados, e ainda é advogado... Que que é chauvinista mesmo?
- Não importa, agora sossega, tenta não destruir a casa. Vou fazer café.
- Ah, Lê, desculpa pela sua florzinha.
- Não tem problema não, querida.
Um som muito estridente veio do fundo de algum lugar, muito longe, repetitivo, porque não pára? - É o seu.
- É a Amanda, não é? Diz pra ela pra parar de encher o saco, se perguntar onde eu tô diz que eu fui pra Amsterdã buscar um porco chauvinista pra ela, aí ela vai ter do que reclamar! E a chave, a chave diz que eu dei pros outros, enfiei no rabo, qualquer coisa.
- Toma o café. Nossa, você vai ficar péssima amanhã.
- Qual a diferença pros outros dias? Não quero, fiquei muito sincera neste encontro comigo mesma. Você não pode evitar.
- Você fica tão filosófica quando bebe, ih. Uma coisa, devia escrever um livro!
- Concordo! É só você não contar nada pra mãe...ela ficaria em estado de choque, só muita reza pra salvá-la deste castigo, destes filhos ingratos, bebendo como essa gente sem família! - e riu como se fosse um riso, forçado. - Você não, porque você saiu boa, mana.
- Você podia nos ouvir só um pouco, pra variar.

Resmungou um pouco, incomodada. Ah, Lê, eu sei, mas que é que se faz? Você, você está bem assim? Alguém está? A mãe perguntava sem parar, porque você bebe assim, hein? Não te demos uma boa educação, não te levamos à igreja, não te ensinamos moral? Ah, mãezinha, ensinar ensinaram, mas isso tudo é cenário e se você olhar bem...foi porque as florzinhas foram ficando gastas nos cantos, porque o sol na estradinha amarela ficou opaco, e está aí, a parede cinza, muito cinza. A verdade dos livros é a mesma das propagandas de perfume e das revistas de decoração, e o que me disseram que era uma democracia talvez nem seja, e o que me prometeram se juntou às outras promessas, e o que parece não é, definitivamente não é, mãe, daqui só a cereja é de verdade. Eu, a Letícia, até o gato estamos todos vestidos demais, mentindo demais. Só a cereja, mergulhada no alcool, descendo pela garganta, a verdade. A verdade é que estamos todos fodidos demais pra confessar, a gente se engana, põe uns gessos bonitos no canto, diz umas coisas bonitas que repetidas acabam parecendo a verdade, essa coisa insólita e amarga, esse alcool matando meu fígado.
- Alguém precisa arrumar esse vaso amarelo, um horror ficar quebrado desse jeito, nem isso o Onofre faz?
- Sabe, querida, não fazia mal se dedicar à alguma coisa de que realmente goste, de vez em quando...porque essa faculdade, porque esse emprego?
- Não sei, Letícia. Vai começar com esse papinho agora? Vou te chamar de Maria Aparecida, sra. minha mãe.
Ela levantou, juntou o papel molhado da violeta pra jogar fora, foi falando pelo caminho, faz isso quando fica irritada.
- Desculpe, é só que você não parece muito feliz.
Ah, tão boa ela, quase a mãe sentada com seu aventalzinho amarelinho, os cabelos alinhados, perguntando pacientemente e piscando os olhinhos, ouvindo com atenção. Você, você vai ser feliz, Letícia, tá inscrito na tua pele. Eu é que não estou feliz mesmo, até um gafanhoto poderia ver isso, eu sei, eu também sei, mas porque, hein? Calhou, calhou acreditar que tenho algum talento e cultivar uns sonhos bobos, sou artista, meu bem, artista! Não sou ordinária como você, com sua contabilidade sem gosto. Mas no fim, não tem tudo o mesmo gosto de cansaço-dinheiro-cansaço? E esse cheiro de tinta e essa repetição de todas as pinturas que já houveram, e os estudiosos exclamando que original, que original! E falando como cartomantes de bolsas pra Europa, prêmios, cifras...Pra que se essa porra não é nem uma democracia, Letícia, eu quero morrer. Se aqueles viados dos franceses são todos xenófobos. Na tevê o PSTU fala numa revolução socialista, pra quê também se nem isso serve. E uns gurus com uma expressão de gravidade dão entrevistas longuíssimas dizendo sobre suas pesquisas, e os maias, o fim do mundo, 2012. E o povo cansado, tão cansado dessas mentiras que vem e vão, são as mesmas vestidas com outras cores, as coisas todas iguais vestidas de linhas originais e necessidades, necessidades que não acabam. E uma solidão que destrói o coração da gente, Letícia, mas até você vai embora, um dia vai cansar de tudo, bater a porta na minha cara e dizer meia dúzia de abobrinhas inspiradas num livrinho pop de um jornalistazinho falido qualquer, que nos fará chorar copiosamente, sem entender. Sem nunca poder entender, nem nos conformar. Vai cansar e poderemos então mentir para sempre! Geração maravilhosa, a gente finge bem, porque a prática leva à perfeição, não é? Os japoneses. Vou vestir esta expressão levemente ofendida que você já conhece e fingir que me conformo, que aceito, que entendo, e que a vida é maravilhosa e meu emprego me realiza. Talvez você fique feliz e talvez até eu fique, hum? Não seria ótimo? Ah! Mas se você soubesse, Letícia, que debaixo de tudo tem um coração traído, traído pelas verdades que não me contaram e por essas maldades que me lembram sempre, os homens, os artistas, as faculdades, e esses idiotas que aparecem na televisão, cantando, querendo os sessenta mil mais abonos salariais, circulando pelos carpetes verdes e caros, em escritórios sérios e muquifos de todo tipo. Eu queria minha ignorância plena e minha inocência de volta, não é o mais caro de tudo, hein, Lê?

Um comentário:

  1. Adoro textos assim. Com revolta, tristeza. Simplesmente adoro. E simplesmente adoro o que você escreve, não importa a maneira, de qualquer assunto.

    Às vezes as mentiras da vida nos cansam um pouco. A maneira como as pessoas levam a vida sem pensar no essencial cansa a gente.

    Beijo

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