Há 2 anos
sábado, 16 de outubro de 2010
Quintas, s/n, n° 124.
Chegou em casa com o dia já claro, mas sem os olhos. Dois buracos tristes no meio do rosto. Não consigo, não consigo! Quis gritar, mas era muito cedo e nesses tempos de estado democrático de direito todo mundo tem muitos direitos, não é verdade? Prendeu o grito e os olhos fundos, tristes. Nem isso pode demais, sofrer anda proibido por esses condomínios de luxo, só em casa, na privacidade! E não vá constranger os outros, menina! Queria se esconder na barra de alguém, fugir. Por que não inventavam uma solução nova? Por que ia ser assim? E os olhos tristes, tristes, afundados. Você vem sempre aqui? Não, quis responder, só quando estou com o coração irremediavelmente fodido, não pretendo voltar, sempre rezo pra não voltar mas volto, parece da natureza da gente, né? “Está aí um que não fará grande carreira no mundo...as emoções o dominam!” É, Dom Casmurro, vamos juntos, vamos todos juntos para o fundo do poço, se é o que Deus quer. Se é pra isso que inventaram essa porra toda. Mas estão todos dizendo, veja os olhos dela! Mas eles não deveriam saber, ninguém deveria saber. E eles faziam barulho, hum? Muito barulho e muitas mãos, muitas pernas, e ela no meio ria, ria e virava os copos que lhe davam, virava todos porque tinham todos o mesmo gosto que as pernas, as línguas, tudo tão sujo, meu pai. E foi difícil ter que te levar àquele lugar! Pra onde agora, pra onde? Queria ir embora, eu quero dar o fora! Mas o corpo ainda ali, doído, o coração ainda faltando, pra onde agora? Até o carro parecia correr meio afobado, buscando o meio fio, pra onde agora, onde? As mãos serpenteavam seguras e decisivas entre a marcha e o volante, e tudo pesava e ela queria correr, correr e não parar de correr nunca mais, o acelerador que não ia mais mas ela puxava, puxava, eu quero dar o fora! E a garganta sofrida, acabou chegando em casa, o que agora? Os nervos irrequietos, não, respirar, é assim mesmo, melhor hoje que depois, mas como, hum? Como, meu pai? No som descia um samba vibrante, batido, dentro de tudo muito cinza, tudo muito tenebroso à essa hora, nenhuma alma viva na rua e cinza e áspero, como era violento e sarcástico o samba descendo a avenida! Pra onde agora? Não devia ter dito nada daquela porra toda, diziam umas firulas e pronto, não tinha sido assim antes, hein? Por que é que tinha que alongar aquela enorme língua naquelas coisas de que nem tinha muita certeza? O que era a verdade, afinal? Eu quero a verdade, meu Pai, me deixa ver a verdade. Tira meu coração desse buraco. Me explica, me explica como é que eu vou fazer, não é muito cruel da sua parte? Ou a mazela é toda nossa? Você não tem responsabilidade não, hum? Chame um advogado, mas daqueles filhos do demônio mesmo, que nós vamos ver se a responsabilidade não é sua, seu depravado! Vamos resolver tudo como se resolve aqui embaixo e eu quero um juiz corrupto que eu possa comprar por muito, muito caro, que seja um bom dum prostituto moral, veja só o que você deixou, hein? O que deixou que nós nos tornássemos. Nós éramos bons...eu e ele ainda somos bons, apesar de tudo, não é? Mas nem disso eu sei mais. Eu não, sempre fui uma vadia enrustida. Aceito tudo, vou levando, digo que sim, sim, está tudo na mais perfeita ordem, doutor. É disso que eles gostam, não é? Ele me pergunta que é que eu faço aqui sozinha...Moço, você vê esse vermelho aguado no fundo do copo? É meu coração.
terça-feira, 28 de setembro de 2010
I feel old, but not very wise.
- Os homens são todos iguais, Letícia.
- Todas dizem isso, mas até você?!
Ela riu abafado, rodou a cereja no fundo do copo - Não! Olha, olha bem...é só uma questão de tempo, até você descobrir a única verdade irrefutável: os homens, esses porcos chauvinistas, são todos iguais, iguaizinhos, viu?
- Ah, cala a boca.
- Juro! Pode perguntar pra melhor mulher do mundo, ela não vai negar...
- Sai da sacada, anda!
- Porcos! Todos porcos! Ela gritou da sacada e riu, riu tanto que escorregou e caiu sentada no chão, um dos vasinhos de flor saiu voando, nove andares de peso e queda livre. Meu Deus, Lê, posso ter matado alguém, entende? Você vai me ver na cadeia? Vai me arrumar um advogado?
Ela correu pra olhar, uma mancha amarela e preta se estendia na calçada. A essa hora, não tinha mais ninguém. Ficaram tão opacas as florzinhas na luz artificial do poste...Uma vassoura bateu no piso, vinda de baixo, o Sr. Alfredo de novo.
- ...Liga pro Otávio Onofre, eu até gosto dele, ele é o menos chau-vi-nis-ta, tão bobinho com aqueles terninhos bem cortados, e ainda é advogado... Que que é chauvinista mesmo?
- Não importa, agora sossega, tenta não destruir a casa. Vou fazer café.
- Ah, Lê, desculpa pela sua florzinha.
- Não tem problema não, querida.
Um som muito estridente veio do fundo de algum lugar, muito longe, repetitivo, porque não pára? - É o seu.
- É a Amanda, não é? Diz pra ela pra parar de encher o saco, se perguntar onde eu tô diz que eu fui pra Amsterdã buscar um porco chauvinista pra ela, aí ela vai ter do que reclamar! E a chave, a chave diz que eu dei pros outros, enfiei no rabo, qualquer coisa.
- Toma o café. Nossa, você vai ficar péssima amanhã.
- Qual a diferença pros outros dias? Não quero, fiquei muito sincera neste encontro comigo mesma. Você não pode evitar.
- Você fica tão filosófica quando bebe, ih. Uma coisa, devia escrever um livro!
- Concordo! É só você não contar nada pra mãe...ela ficaria em estado de choque, só muita reza pra salvá-la deste castigo, destes filhos ingratos, bebendo como essa gente sem família! - e riu como se fosse um riso, forçado. - Você não, porque você saiu boa, mana.
- Você podia nos ouvir só um pouco, pra variar.
Resmungou um pouco, incomodada. Ah, Lê, eu sei, mas que é que se faz? Você, você está bem assim? Alguém está? A mãe perguntava sem parar, porque você bebe assim, hein? Não te demos uma boa educação, não te levamos à igreja, não te ensinamos moral? Ah, mãezinha, ensinar ensinaram, mas isso tudo é cenário e se você olhar bem...foi porque as florzinhas foram ficando gastas nos cantos, porque o sol na estradinha amarela ficou opaco, e está aí, a parede cinza, muito cinza. A verdade dos livros é a mesma das propagandas de perfume e das revistas de decoração, e o que me disseram que era uma democracia talvez nem seja, e o que me prometeram se juntou às outras promessas, e o que parece não é, definitivamente não é, mãe, daqui só a cereja é de verdade. Eu, a Letícia, até o gato estamos todos vestidos demais, mentindo demais. Só a cereja, mergulhada no alcool, descendo pela garganta, a verdade. A verdade é que estamos todos fodidos demais pra confessar, a gente se engana, põe uns gessos bonitos no canto, diz umas coisas bonitas que repetidas acabam parecendo a verdade, essa coisa insólita e amarga, esse alcool matando meu fígado.
- Alguém precisa arrumar esse vaso amarelo, um horror ficar quebrado desse jeito, nem isso o Onofre faz?
- Sabe, querida, não fazia mal se dedicar à alguma coisa de que realmente goste, de vez em quando...porque essa faculdade, porque esse emprego?
- Não sei, Letícia. Vai começar com esse papinho agora? Vou te chamar de Maria Aparecida, sra. minha mãe.
Ela levantou, juntou o papel molhado da violeta pra jogar fora, foi falando pelo caminho, faz isso quando fica irritada.
- Desculpe, é só que você não parece muito feliz.
Ah, tão boa ela, quase a mãe sentada com seu aventalzinho amarelinho, os cabelos alinhados, perguntando pacientemente e piscando os olhinhos, ouvindo com atenção. Você, você vai ser feliz, Letícia, tá inscrito na tua pele. Eu é que não estou feliz mesmo, até um gafanhoto poderia ver isso, eu sei, eu também sei, mas porque, hein? Calhou, calhou acreditar que tenho algum talento e cultivar uns sonhos bobos, sou artista, meu bem, artista! Não sou ordinária como você, com sua contabilidade sem gosto. Mas no fim, não tem tudo o mesmo gosto de cansaço-dinheiro-cansaço? E esse cheiro de tinta e essa repetição de todas as pinturas que já houveram, e os estudiosos exclamando que original, que original! E falando como cartomantes de bolsas pra Europa, prêmios, cifras...Pra que se essa porra não é nem uma democracia, Letícia, eu quero morrer. Se aqueles viados dos franceses são todos xenófobos. Na tevê o PSTU fala numa revolução socialista, pra quê também se nem isso serve. E uns gurus com uma expressão de gravidade dão entrevistas longuíssimas dizendo sobre suas pesquisas, e os maias, o fim do mundo, 2012. E o povo cansado, tão cansado dessas mentiras que vem e vão, são as mesmas vestidas com outras cores, as coisas todas iguais vestidas de linhas originais e necessidades, necessidades que não acabam. E uma solidão que destrói o coração da gente, Letícia, mas até você vai embora, um dia vai cansar de tudo, bater a porta na minha cara e dizer meia dúzia de abobrinhas inspiradas num livrinho pop de um jornalistazinho falido qualquer, que nos fará chorar copiosamente, sem entender. Sem nunca poder entender, nem nos conformar. Vai cansar e poderemos então mentir para sempre! Geração maravilhosa, a gente finge bem, porque a prática leva à perfeição, não é? Os japoneses. Vou vestir esta expressão levemente ofendida que você já conhece e fingir que me conformo, que aceito, que entendo, e que a vida é maravilhosa e meu emprego me realiza. Talvez você fique feliz e talvez até eu fique, hum? Não seria ótimo? Ah! Mas se você soubesse, Letícia, que debaixo de tudo tem um coração traído, traído pelas verdades que não me contaram e por essas maldades que me lembram sempre, os homens, os artistas, as faculdades, e esses idiotas que aparecem na televisão, cantando, querendo os sessenta mil mais abonos salariais, circulando pelos carpetes verdes e caros, em escritórios sérios e muquifos de todo tipo. Eu queria minha ignorância plena e minha inocência de volta, não é o mais caro de tudo, hein, Lê?
- Todas dizem isso, mas até você?!
Ela riu abafado, rodou a cereja no fundo do copo - Não! Olha, olha bem...é só uma questão de tempo, até você descobrir a única verdade irrefutável: os homens, esses porcos chauvinistas, são todos iguais, iguaizinhos, viu?
- Ah, cala a boca.
- Juro! Pode perguntar pra melhor mulher do mundo, ela não vai negar...
- Sai da sacada, anda!
- Porcos! Todos porcos! Ela gritou da sacada e riu, riu tanto que escorregou e caiu sentada no chão, um dos vasinhos de flor saiu voando, nove andares de peso e queda livre. Meu Deus, Lê, posso ter matado alguém, entende? Você vai me ver na cadeia? Vai me arrumar um advogado?
Ela correu pra olhar, uma mancha amarela e preta se estendia na calçada. A essa hora, não tinha mais ninguém. Ficaram tão opacas as florzinhas na luz artificial do poste...Uma vassoura bateu no piso, vinda de baixo, o Sr. Alfredo de novo.
- ...Liga pro Otávio Onofre, eu até gosto dele, ele é o menos chau-vi-nis-ta, tão bobinho com aqueles terninhos bem cortados, e ainda é advogado... Que que é chauvinista mesmo?
- Não importa, agora sossega, tenta não destruir a casa. Vou fazer café.
- Ah, Lê, desculpa pela sua florzinha.
- Não tem problema não, querida.
Um som muito estridente veio do fundo de algum lugar, muito longe, repetitivo, porque não pára? - É o seu.
- É a Amanda, não é? Diz pra ela pra parar de encher o saco, se perguntar onde eu tô diz que eu fui pra Amsterdã buscar um porco chauvinista pra ela, aí ela vai ter do que reclamar! E a chave, a chave diz que eu dei pros outros, enfiei no rabo, qualquer coisa.
- Toma o café. Nossa, você vai ficar péssima amanhã.
- Qual a diferença pros outros dias? Não quero, fiquei muito sincera neste encontro comigo mesma. Você não pode evitar.
- Você fica tão filosófica quando bebe, ih. Uma coisa, devia escrever um livro!
- Concordo! É só você não contar nada pra mãe...ela ficaria em estado de choque, só muita reza pra salvá-la deste castigo, destes filhos ingratos, bebendo como essa gente sem família! - e riu como se fosse um riso, forçado. - Você não, porque você saiu boa, mana.
- Você podia nos ouvir só um pouco, pra variar.
Resmungou um pouco, incomodada. Ah, Lê, eu sei, mas que é que se faz? Você, você está bem assim? Alguém está? A mãe perguntava sem parar, porque você bebe assim, hein? Não te demos uma boa educação, não te levamos à igreja, não te ensinamos moral? Ah, mãezinha, ensinar ensinaram, mas isso tudo é cenário e se você olhar bem...foi porque as florzinhas foram ficando gastas nos cantos, porque o sol na estradinha amarela ficou opaco, e está aí, a parede cinza, muito cinza. A verdade dos livros é a mesma das propagandas de perfume e das revistas de decoração, e o que me disseram que era uma democracia talvez nem seja, e o que me prometeram se juntou às outras promessas, e o que parece não é, definitivamente não é, mãe, daqui só a cereja é de verdade. Eu, a Letícia, até o gato estamos todos vestidos demais, mentindo demais. Só a cereja, mergulhada no alcool, descendo pela garganta, a verdade. A verdade é que estamos todos fodidos demais pra confessar, a gente se engana, põe uns gessos bonitos no canto, diz umas coisas bonitas que repetidas acabam parecendo a verdade, essa coisa insólita e amarga, esse alcool matando meu fígado.
- Alguém precisa arrumar esse vaso amarelo, um horror ficar quebrado desse jeito, nem isso o Onofre faz?
- Sabe, querida, não fazia mal se dedicar à alguma coisa de que realmente goste, de vez em quando...porque essa faculdade, porque esse emprego?
- Não sei, Letícia. Vai começar com esse papinho agora? Vou te chamar de Maria Aparecida, sra. minha mãe.
Ela levantou, juntou o papel molhado da violeta pra jogar fora, foi falando pelo caminho, faz isso quando fica irritada.
- Desculpe, é só que você não parece muito feliz.
Ah, tão boa ela, quase a mãe sentada com seu aventalzinho amarelinho, os cabelos alinhados, perguntando pacientemente e piscando os olhinhos, ouvindo com atenção. Você, você vai ser feliz, Letícia, tá inscrito na tua pele. Eu é que não estou feliz mesmo, até um gafanhoto poderia ver isso, eu sei, eu também sei, mas porque, hein? Calhou, calhou acreditar que tenho algum talento e cultivar uns sonhos bobos, sou artista, meu bem, artista! Não sou ordinária como você, com sua contabilidade sem gosto. Mas no fim, não tem tudo o mesmo gosto de cansaço-dinheiro-cansaço? E esse cheiro de tinta e essa repetição de todas as pinturas que já houveram, e os estudiosos exclamando que original, que original! E falando como cartomantes de bolsas pra Europa, prêmios, cifras...Pra que se essa porra não é nem uma democracia, Letícia, eu quero morrer. Se aqueles viados dos franceses são todos xenófobos. Na tevê o PSTU fala numa revolução socialista, pra quê também se nem isso serve. E uns gurus com uma expressão de gravidade dão entrevistas longuíssimas dizendo sobre suas pesquisas, e os maias, o fim do mundo, 2012. E o povo cansado, tão cansado dessas mentiras que vem e vão, são as mesmas vestidas com outras cores, as coisas todas iguais vestidas de linhas originais e necessidades, necessidades que não acabam. E uma solidão que destrói o coração da gente, Letícia, mas até você vai embora, um dia vai cansar de tudo, bater a porta na minha cara e dizer meia dúzia de abobrinhas inspiradas num livrinho pop de um jornalistazinho falido qualquer, que nos fará chorar copiosamente, sem entender. Sem nunca poder entender, nem nos conformar. Vai cansar e poderemos então mentir para sempre! Geração maravilhosa, a gente finge bem, porque a prática leva à perfeição, não é? Os japoneses. Vou vestir esta expressão levemente ofendida que você já conhece e fingir que me conformo, que aceito, que entendo, e que a vida é maravilhosa e meu emprego me realiza. Talvez você fique feliz e talvez até eu fique, hum? Não seria ótimo? Ah! Mas se você soubesse, Letícia, que debaixo de tudo tem um coração traído, traído pelas verdades que não me contaram e por essas maldades que me lembram sempre, os homens, os artistas, as faculdades, e esses idiotas que aparecem na televisão, cantando, querendo os sessenta mil mais abonos salariais, circulando pelos carpetes verdes e caros, em escritórios sérios e muquifos de todo tipo. Eu queria minha ignorância plena e minha inocência de volta, não é o mais caro de tudo, hein, Lê?
sexta-feira, 13 de agosto de 2010
I ain´t go stop until I see police lights
Corra, corra, menina. A estrada é comprida e boa e você corre bem, não corre? Corra. Não há motivo pra não fazê-lo. Antes que fique tarde, antes que não possa...vai embora. Os homens fizeram a estrada pra ir embora, e os poetas fracassados, as mulheres devastadas, estão todos com você e cantam alto e a estrada vai, vai, a batida no coração e a dor escorrendo e os pneus cantando. Não tem problema, corre. Quem disse que o amor não existe sabia sair daqui e eu não sei como, corre. As mãos podiam errar a certeza, não podiam? Mas não vão, e você pode correr mais rápido, se quiser, se apertar e você estiver assustada. Menina, já que não pode ficar, corra.
Eles ouvem você e me acusam mas se você prestar atenção, não é bem assim, sabe? Nem eu sou tão egoísta nem você tão bom, então pare de se curar de mim. Tá doendo. E eu não sei o que fazer, o que devia fazer? Desço rolando as escadas, meu pai, me leva, me salva, me salva! Talvez se você deixar o coração numa dessas esquinas, menina, tantas mulheres já fizeram isso, talvez você deixe no fundo do copo e não volte, talvez você deixe na lixeira antes de entrar na boate, antes de ir parar num apartamentinho sujo. E os olhos vão mudar a cor, só maliciosos. Mas se você correr agora, correr sem olhar pra trás, ainda deve haver tempo, meu bem. E pare de rezar para Deus e comece a cultuar o Diabo, ele entende, entende. Deus é um filho da puta, um tirano, um palhaço. Ele dá e tira, só o diabo é ético, e se os cristãos me ouvissem me queimariam mas estão com os olhos vendados e andando pro buraco cantando melodias infantis, não sabem contra o que lutar, não sabem o que estão seguindo. Deus tem pena mas de mim não porque a gente anda meio brigado, entende? Ele não gosta do que eu digo e eu não gosto do que ele faz. Me mandou sair da casa dele, mas não deixou barato. Ele queria mais, muito mais. Queria me provar muitas coisas e me dar esse gosto amargo, mas eu não quero mais lutar, estou com medo, me salva, meu Pai, os homens não podem entender os seus desígnios mas é compreensível que tenham raiva, hum? Ou você queria ovelhinhas, mortas a mando de Deus e gritando Glória ao Senhor, a melhor fé é mais coerente que essa, então eu peço que me perdoe, me perdoe por correr, por maldizê-lo, mas é tudo amor e medo, é tudo um amor fundo e desesperado e amante, Pai, desposa meu coração, leva-o consigo, me salva, meu Pai, me leve daqui, e vigie minhas mãos arrogantes e meu coração fodido, eu quero paz.
Eles ouvem você e me acusam mas se você prestar atenção, não é bem assim, sabe? Nem eu sou tão egoísta nem você tão bom, então pare de se curar de mim. Tá doendo. E eu não sei o que fazer, o que devia fazer? Desço rolando as escadas, meu pai, me leva, me salva, me salva! Talvez se você deixar o coração numa dessas esquinas, menina, tantas mulheres já fizeram isso, talvez você deixe no fundo do copo e não volte, talvez você deixe na lixeira antes de entrar na boate, antes de ir parar num apartamentinho sujo. E os olhos vão mudar a cor, só maliciosos. Mas se você correr agora, correr sem olhar pra trás, ainda deve haver tempo, meu bem. E pare de rezar para Deus e comece a cultuar o Diabo, ele entende, entende. Deus é um filho da puta, um tirano, um palhaço. Ele dá e tira, só o diabo é ético, e se os cristãos me ouvissem me queimariam mas estão com os olhos vendados e andando pro buraco cantando melodias infantis, não sabem contra o que lutar, não sabem o que estão seguindo. Deus tem pena mas de mim não porque a gente anda meio brigado, entende? Ele não gosta do que eu digo e eu não gosto do que ele faz. Me mandou sair da casa dele, mas não deixou barato. Ele queria mais, muito mais. Queria me provar muitas coisas e me dar esse gosto amargo, mas eu não quero mais lutar, estou com medo, me salva, meu Pai, os homens não podem entender os seus desígnios mas é compreensível que tenham raiva, hum? Ou você queria ovelhinhas, mortas a mando de Deus e gritando Glória ao Senhor, a melhor fé é mais coerente que essa, então eu peço que me perdoe, me perdoe por correr, por maldizê-lo, mas é tudo amor e medo, é tudo um amor fundo e desesperado e amante, Pai, desposa meu coração, leva-o consigo, me salva, meu Pai, me leve daqui, e vigie minhas mãos arrogantes e meu coração fodido, eu quero paz.
terça-feira, 27 de julho de 2010
- Luiza, abre a mão.
- Não quero. É meu.
- Mas assim você vai matá-lo! Quer que morra, é?
- Não.
- Solta, Luiza.
- Não posso, mamãe...por favor.
- Vai se sentir culpada e Deus vê tudo, já lhe disse isso, vai achar você cruel e ninguém gosta de gente assim. Nem Deus. Nem ele, coitadinho, que não tem nada com isso, pra quê machucá-lo?
E como já batia um pouco desesperado na sua mão, a vontade doendo nas veias, a posse rugindo e dizendo não e mantendo as mãos fechadas, impiedosas. Fazer sem pensar, fica mais fácil. Abriu os dedinhos e afastou as mãos. Foi embora. Com um suspiro profundo, ela desabou na grama sentada, com uma dorzinha de saudade e outras mais, ferozes, altas. Os olhos encheram d´água mas resistiu, apesar da raiva. Um amor cruel, desses que pedem pra si. Cheirou as mãos, depois passou-as no vestido pra se livrar dos vestígios, mas criança esquece rápido.
- Não quero. É meu.
- Mas assim você vai matá-lo! Quer que morra, é?
- Não.
- Solta, Luiza.
- Não posso, mamãe...por favor.
- Vai se sentir culpada e Deus vê tudo, já lhe disse isso, vai achar você cruel e ninguém gosta de gente assim. Nem Deus. Nem ele, coitadinho, que não tem nada com isso, pra quê machucá-lo?
E como já batia um pouco desesperado na sua mão, a vontade doendo nas veias, a posse rugindo e dizendo não e mantendo as mãos fechadas, impiedosas. Fazer sem pensar, fica mais fácil. Abriu os dedinhos e afastou as mãos. Foi embora. Com um suspiro profundo, ela desabou na grama sentada, com uma dorzinha de saudade e outras mais, ferozes, altas. Os olhos encheram d´água mas resistiu, apesar da raiva. Um amor cruel, desses que pedem pra si. Cheirou as mãos, depois passou-as no vestido pra se livrar dos vestígios, mas criança esquece rápido.
quarta-feira, 7 de julho de 2010
Queria te dizer, escrever uma carta grande com tinta azul pra você. Cheia de coisas que não posso dizer e não sei explicar. Mas e depois? O que viria depois? Não sei, por isso não escrevo. Estou naquele ponto definitivo em que tudo o que se diz é delação, e não posso. Não pergunte porque, hum? É tudo complicado e grande e me devora e fica me mascando, olha, comprei livros novos e gritantes mas continua me apertando, me mascando, uma cobra que ficou enrolada e de vez em quando me aperta mais um pouco pra lembrar que está ali. Já me afeiçoei a ela e ela me aperta e eu aceito, cheguei até aqui, haveria mesmo de ser assim. Não escreveria na sua carta que será necessário deixar passar do ponto, pra que você possa ir embora. É uma consciência branca, só isso posso fazer, esperar o vermelho ficar escuro e enjoativo, esperar você ir embora e dizer, sim claro, um beijo, a gente se vê. E deixar o coração gritar alto mas tudo na surdina, bom dia, como tem passado? Apesar de querer socar esse seu sorrisinho leve, socar não, chorar e pedir socorro e pedir pra você, não, não! Mas eu não vou pedir nada. Vou sorrir e continuar andando na rua insuspeitável e avessa, mesmo que tudo pese como uma âncora e eu tenha tanta coisa pra te falar, já não vai adiantar e aí estará tudo resolvido e eu amarrada de novo, a essa altura a cobra já será de criação, amarela brilhante se enrolando no meu peito oprimido e conformado. Era preciso dizer ainda tudo isso que eu não disse, que você era meu coração e talvez fosse só por isso eu ainda não era inteiramente ruim, mas a gente paga um preço por tudo, não é? E eu sei que vai doer, que eu vou enlouquecer e não tem como evitar, não tenho medo, você pode ir embora, mudar a rota devagar, esquecer de passar aqui em casa às quintas-feiras, esquecer de andar comigo contigo o tempo todo, numa conversa silenciosa, cheia de intervenções. Pode esquecer tudo e deixar passar a sua febre, esquecer, esquecer; pode vir aqui, gritar, pode fazer todos os últimos dolorosos movimentos, deitar os olhos em mim, me abraçar e me queimar com eles, naquele parenteses insuportável entre o seu corpo e o meu. E aí quando eu não te vir mais, esse silêncio vai se entranhar nos meus pêlos e enfiar as unhas em mim, eu vou querer fugir e te amaldiçoar e te trazer de volta pelo amor de deus. E Deus fica cruel e bom e íntimo nesse momento, num sono torpe, doído. Eu vou refazer todos os passos do que me levou até você, vou encontrar mil falhas, indícios, erros, vou dizer que a culpa é minha, é sua, é de Deus. Sobretudo vou culpar todo mundo porque você continuará sendo bom, sabe, menino, eu sei que você não vai brigar comigo, nem me amaldiçoar, me difamar, você vai sofrer também e isso agora dói mais que tudo. Vou xingar Deus por ter me deixado atravessar a porta, a mãe por ter me posto no avião pra cá, a Letícia por ter me desencaminhado, atrasado meu curso, tudo que não me deteu e me deixou chegar aqui, as festas intermináveis na casa de todo mundo, e você, você e seus olhos lúcidos e bons e dominadores. Não faz frio, menino, alguma coisa passou por aqui e levou a meu corpo, meu coração, não vejo nada, não sinto nada, e por mais que o mundo seja violento fiquei boba, e por mais que tudo fique sem cor fiquei sofrida, dia com sol, nublado, gente, tudo me deixa assim nessa dor lenta de nao ter você e precisar tanto, e te amar tanto.
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