terça-feira, 27 de julho de 2010

- Luiza, abre a mão.
- Não quero. É meu.
- Mas assim você vai matá-lo! Quer que morra, é?
- Não.
- Solta, Luiza.
- Não posso, mamãe...por favor.
- Vai se sentir culpada e Deus vê tudo, já lhe disse isso, vai achar você cruel e ninguém gosta de gente assim. Nem Deus. Nem ele, coitadinho, que não tem nada com isso, pra quê machucá-lo?
E como já batia um pouco desesperado na sua mão, a vontade doendo nas veias, a posse rugindo e dizendo não e mantendo as mãos fechadas, impiedosas. Fazer sem pensar, fica mais fácil. Abriu os dedinhos e afastou as mãos. Foi embora. Com um suspiro profundo, ela desabou na grama sentada, com uma dorzinha de saudade e outras mais, ferozes, altas. Os olhos encheram d´água mas resistiu, apesar da raiva. Um amor cruel, desses que pedem pra si. Cheirou as mãos, depois passou-as no vestido pra se livrar dos vestígios, mas criança esquece rápido.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Queria te dizer, escrever uma carta grande com tinta azul pra você. Cheia de coisas que não posso dizer e não sei explicar. Mas e depois? O que viria depois? Não sei, por isso não escrevo. Estou naquele ponto definitivo em que tudo o que se diz é delação, e não posso. Não pergunte porque, hum? É tudo complicado e grande e me devora e fica me mascando, olha, comprei livros novos e gritantes mas continua me apertando, me mascando, uma cobra que ficou enrolada e de vez em quando me aperta mais um pouco pra lembrar que está ali. Já me afeiçoei a ela e ela me aperta e eu aceito, cheguei até aqui, haveria mesmo de ser assim. Não escreveria na sua carta que será necessário deixar passar do ponto, pra que você possa ir embora. É uma consciência branca, só isso posso fazer, esperar o vermelho ficar escuro e enjoativo, esperar você ir embora e dizer, sim claro, um beijo, a gente se vê. E deixar o coração gritar alto mas tudo na surdina, bom dia, como tem passado? Apesar de querer socar esse seu sorrisinho leve, socar não, chorar e pedir socorro e pedir pra você, não, não! Mas eu não vou pedir nada. Vou sorrir e continuar andando na rua insuspeitável e avessa, mesmo que tudo pese como uma âncora e eu tenha tanta coisa pra te falar, já não vai adiantar e aí estará tudo resolvido e eu amarrada de novo, a essa altura a cobra já será de criação, amarela brilhante se enrolando no meu peito oprimido e conformado. Era preciso dizer ainda tudo isso que eu não disse, que você era meu coração e talvez fosse só por isso eu ainda não era inteiramente ruim, mas a gente paga um preço por tudo, não é? E eu sei que vai doer, que eu vou enlouquecer e não tem como evitar, não tenho medo, você pode ir embora, mudar a rota devagar, esquecer de passar aqui em casa às quintas-feiras, esquecer de andar comigo contigo o tempo todo, numa conversa silenciosa, cheia de intervenções. Pode esquecer tudo e deixar passar a sua febre, esquecer, esquecer; pode vir aqui, gritar, pode fazer todos os últimos dolorosos movimentos, deitar os olhos em mim, me abraçar e me queimar com eles, naquele parenteses insuportável entre o seu corpo e o meu. E aí quando eu não te vir mais, esse silêncio vai se entranhar nos meus pêlos e enfiar as unhas em mim, eu vou querer fugir e te amaldiçoar e te trazer de volta pelo amor de deus. E Deus fica cruel e bom e íntimo nesse momento, num sono torpe, doído. Eu vou refazer todos os passos do que me levou até você, vou encontrar mil falhas, indícios, erros, vou dizer que a culpa é minha, é sua, é de Deus. Sobretudo vou culpar todo mundo porque você continuará sendo bom, sabe, menino, eu sei que você não vai brigar comigo, nem me amaldiçoar, me difamar, você vai sofrer também e isso agora dói mais que tudo. Vou xingar Deus por ter me deixado atravessar a porta, a mãe por ter me posto no avião pra cá, a Letícia por ter me desencaminhado, atrasado meu curso, tudo que não me deteu e me deixou chegar aqui, as festas intermináveis na casa de todo mundo, e você, você e seus olhos lúcidos e bons e dominadores. Não faz frio, menino, alguma coisa passou por aqui e levou a meu corpo, meu coração, não vejo nada, não sinto nada, e por mais que o mundo seja violento fiquei boba, e por mais que tudo fique sem cor fiquei sofrida, dia com sol, nublado, gente, tudo me deixa assim nessa dor lenta de nao ter você e precisar tanto, e te amar tanto.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

- Que é que você tem?
Estou doente de desafeto, Marina, doente! Há dias que estou enfurnada nesse apartamento, eu e Beethoven e o passarinho que não liga pra mim, vou te contar, Beethoven é o melhor deles, mas muito doloroso. Era um fodido também, assim, que nem eu. Talvez até pior, não sei, porque não fico prestando atenção na vida desses caras, prefiro pensar que são um pouco os semideuses e escreviam as partituras na mesma febre em que Caio escreve, tudo sincopado, perfeito, perfeito desde o início. E aí invento as sujeiras mundanas deles, apesar de não conseguir pensar em nenhuma safadeza com a Elise, por exemplo, que música mais bonita, não é? Tenho tanta pressa, Marina, gostaria de te explicar, tanto, mas você fica com essa carinha de sonsa e dizendo do horror que deu no jornal hoje, você não viu? Não vi, não quero saber, deixo os jornais sempre por fora porque não quero acreditar que somos assim ruins, vovó contava uma história tão bonita do amor com que Deus foi fazer, à imagem e semelhança, porque haveríamos de ser uns filhos da puta? Não, não quero olhar porque nunca falam das pessoas cristãs desse mundo, praticantes, de suas experiências de fé! Olha, andei assistindo muito canal cristão também, confesso, me arrependo, Deus deve me odiar mesmo, talvez por isso...! É que eu acho engraçado o jeito que eles falam, sabe? Como se fossemos os leprosos, e eles os sábios ensinando as criancinhas. Eles se alegrando a cada convidado que chamam, e falam de experiências de fé e vendem livrinhos pra te fazer chegar a Jesus, não é hilário, Marina? Fico pensando onde é que o mundo vai parar com pessoas assim como eu, você e a iluminada sem decote e saias compridas na tevê.
- Hein, o que tem feito, menina?
- Não sei, Marina, comprei uns livros e fiquei aqui quase o feriado todo, fui na casa do Daniel porque teve festinha lá, mas foi só.
- Hum, o Daniel de novo.
- Pare com isso, você parece uma criança. Não põe tanto tempero assim não porque vai ficar ruim, você não conhece os meus temperos. E além do mais, ele tem aquela namoradinha.
- Só você se importa com isso. Não sei em que mundo você vive.

Não sei o seu, Marina. Fica me sondando só pra ver se meu rosto muda, fala e fica olhando, procurando, já disse que eu sou boa em esconder as coisas, não adianta. Mas depois fico falante como um papagaio, nem ouço mais o que digo e digo bobagens, bobagens encarrilhadas que vão descendo a ladeira, uh! Não acaba nunca mais. Até ela esquecer, mas ela sabe. Marina, antigamente as pessoas morriam de desafeto também, não é? Não naqueles livros que você lê, em que os casais ficam dizendo eu te amo toda hora e aproveitando o dia ensolarado pra fazer um piquenique cristão; estou falando sério, eu era boa nisso mas agora fiquei ruim, fiquei fraca, me salva, Marina! E ninguém pode me salvar porque fui eu que cavei, fui rodando e rodando e cavando a terra e negando até chegar aqui, agora sim. Fiquei sozinha e me achando uma boba, tão bobas as discussões que não vão nem ficam, só ficam assim, bolha de sabão, as palavras atravessadas. Convicta ainda porque vou até o final. Era o certo, o melhor, então pronto, está feito. Se perguntarem do que foi, Marina, não foram nem os cigarros, nem o emprego capitalista e sanguinário que me angustia, foi desafeto. Mas eu juro que vou na redação segunda feira, juro que vou escrever as mesmas coisas de sempre e não vou me matar, nem fazer pregação pras pessoas, vou ficar quieta e boba como sempre. Mas o olho cinza, cinza até a cegueira. E mesmo quando a gente acha que não sente mais nada, nem se o próprio diabo descer com o fogo e pedras e provações, não sou igual a você, Marina, fingindo que tudo te ofende porque assim fica mais fácil e as ofensas menos agressivas, sensível a Marina, fiquei boba como você, se for no cinema assistir aqueles filmes absurdos vou chorar pelo cachorro, pelo papagaio, pelo vilão que se deu mal, por tudo.

- Depois do almoço a gente podia ir no café ali embaixo.
- É? Pode ser.
- ...comer aquela torta de chocolate com morango.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

- Ele jurou a ela que não tinha nada com a tal mulher, não. Apesar dela ligar todo dia pra dizer aqueles absurdos, sabia que o casamento era uma tristeza, sabia do limite do cartão de crédito, sabia do filho tímido e com déficit de atenção, sabia de tudo...e ela foi acreditar ele! Então eles foram, a mulher encostou-a na parede assim e gritou como uma louca, um horror, e qdo ela disse que o casamento não era tão ruim assim a outra encheu a mão e deu-lhe dois tapas na cara, ele não se moveu, imagine!...Disse que tinha um filho dele, coisa que ela não podia dar, e mesmo furiosa deu aquele sorriso satisfeito e cruel.
- Mas e ela, fez o que? - perguntou brincando com o frango grelhado no prato. Essas comidas de modelo são uma infelicidade, tudo com gosto de papel, passado a seco na grelha porque não pode pôr óleo, óleo mata, Jandira! Me mata é viver essa vida sem gosto, até na comida agora?!
- ...e foram embora.
- Hein? Ela não fez nada, é? - mas ela era tão boazona com sua classe toda, pedigree em todas as patas que lavavam os pratos caros com delicadeza, minha mãe volta da Itália essa semana, dizia com aquela naturalidade calculada. Cadela.
- Não, menina, mas você não está ouvindo? Ela ficou chocada demais, nunca vi a Clotilde assim, se livrou da mulher, enfiou o marido no carro e pediu pra ele ir lendo aquela parte das cartas no jornal pra que ela não jogasse o carro no rio com os dois dentro ou voltasse pra passar o carro em cima da vagabunda.
- Ah.
- Ih, como você tá chata hoje.

Só você tem esperança que eu não seja chata sempre, pensei, dando um sorrisinho sem graça pra ela.

- Mas é ótimo que seja feriado, você não acha? Caiu muito bem, hein? Nós podíamos ir no sítio daquele amigo meu de Belo Horizonte, ele disse que vinha pra cá e que iam fazer qualquer coisa hoje...e tem o primo dele, você lembra dele, não lembra?
- Lembro. - mas gosto mais, muito mais desse chocolate velho que encontrei no armário, pensou maldosa.
- Que foi?
- Nada. Seria bom mesmo encontrá-los hoje, disse mordendo o chocolate com malícia. Mas que é que tem? Era melhor que ficar em casa, não era? Não era?

- Vou fazer um café, não tem graça esse chocolate sem café.
- Isso porque você não pode com cafeína.
- Só hoje, meu bem. Até porque você é uma negação pra dieta, você me desestimula.

Antes fosse há anos atrás, que eu a estimulava a provar os homens novos, as mulheres novas, como foi que a gente ficou assim boba, hein, Maninha? Cadê a sede, a crença que a gente tinha? Ó, pai, daqui a pouco tem as doenças, doenças e taxas, no final fica todo mundo médico de tanta dor.
Mas agora, agora que sabia que o amor era só essa ilusão boba que a gente tem, sofria menos. Bem menos. Pelo Paulo, que deixara atravessar a porta tantas vezes. Por não ter querido se casar, casar é pra gente carente, dizia enquanto acendia um cigarro e virava os comprimidos coloridos. Tantos, que parecia que brotavam, e cada dia ela tomava mais, 3 do pra dormir, 2 calmantes, 4 da pressão...e no final se misturavam todos e ela já não sabia mais quantos eram, virava tudo no café frio e sem açúcar. Não queria casar, não ia a casamentos, visitava a mãe muito raramente porque lá tudo era tão limpo, tão branco, ficava fora do lugar; e depois tinha ficado assim mole, ó, as grinaldas brancas! Mamãe, será que fiz tudo errado, mamãe? Vai saber, também não importa mais, não importa. O amor, essa coisa viscosa que abraça a gente, acorrenta, então ia devagar abrindo mão daquele homem bom, do homem bom com olhar bom e corpo quente, abria mão da carreira que podia ter sido bonita se não tivesse feito tanta merda na faculdade, mas o pai ofereceu uma especialização nos Estados Unidos, seria bom, não seria? Amor não, e se desvestia dessas raízes incômodas do amor, cultivava um querer sonso, realista, morno. Talvez assim pudesse enxergar tudo com mais clareza e aí talvez tudo voltasse a ser como deveria ter sido, sem vermelho, e nova, clara, com a visão tão boa que agora podia ver os contornos, os contornos nítidos e as cores de tudo, a beleza e as imperfeições, e assim tudo seria novo, tudo diferente do que a gente via hoje, e finalmente teríamos a verdade, a verdade sem essas coisas que construíram em volta de tudo, tantos anos, tanta loucura esses homens sem pátria, sem racionalidade, meu pai! Se pudesse ver o inútil e saber o inútil, e se fosse assim também branca e oca veria tudo e seria ela própria a verdade, a verdade e ali estaria Deus. E veria, Jesus disse: levanta-te e anda. Enquanto as cores rachavam suas pupilas, tentava tirar a venda da Marina,a justiça cega que por isso cortava as cabeças dos inocentes, se tivesse nascido no regime nazista seria nazista louca, Heil Hitler! Se na corte teria vestido e desvestido a rainha com a mesma simplicidade, ela é mesmo uma bastarda, minha senhora. Deseja o chá agora ou depois dos jogos? E carregaria as perucas e todas aquelas quinquilharias com a mesma dignidade que faria qualquer coisa na vida. Boa, a Marina. Ruim era ela.

- Já está tarde, ham? Vamos acabar atrasadas, e tem tanta coisa pra fazer!
Pra que a pressa se vamos todos morrer, Marina. Tinha pressa porque ia pro céu, mas ela não. Então não tinha pressa. - Só um minuto, meu bem, senta e toma o seu café antes que eu fique nervosa e puxe um cigarro.
- Você vai morrer, com esse pulmão preto.
- Os médicos são todos mentirosos, Marina. É uma conspiração contra a felicidade, porque são uns coitados, torturados na faculdade.

sábado, 19 de junho de 2010

Eu comia Marcela às quintas-feiras.

http://laudanoeabsinto.blogspot.com/2008/12/marcela.html